Homenagem Eduardo Coutinho

Ao outro com carinho

Estudante de Direito, jornalista, diretor de cinema, roteirista. As experiências entre ficção e jornalismo formaram o Eduardo Coutinho documentarista. Aluno de uma das mais prestigiadas escolas de cinema, o Idhec (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos), fez parte do movimento do Cinema Novo na década de 60, mas a radicalização da censura tornou ainda mais difícil fazer cinema no Brasil. A realidade de Coutinho era outra: tinha que trabalhar para sustentar a família e voltou ao jornalismo no início da década de 70 como copidesque e crítico no Jornal do Brasil até receber o convite para trabalhar no Globo Repórter. Durante os nove anos que atuou fazendo documentários para TV pôde praticar bastante o seu “ouvir” e a sua “conversa” que, como ele mesmo diz, serviram de vestibular para concluir a sua mais importante obra: Cabra marcado para morrer (1984) – filme premiado e aclamado pela crítica.

Após o lançamento do bem sucedido Cabra o que fazer? Filmar em película era caro e um filme documentário sempre contava com poucos recursos. Coutinho dirige para o Iser (Instituto de Estudos para Religião) o média-metragem Santa Marta: duas semanas no morro (1987), de 54 minutos, fruto de um concurso do Ministério da Justiça para a produção de um vídeo sobre a violência nas favelas do Rio de Janeiro. Com pouco dinheiro, Coutinho realiza o documentário em duas semanas de gravação. O resultado: 23 horas de material gravado e uma infinidade de possibilidades. Usando o vídeo o diretor pôde filmar muito, principalmente as conversas que são tão importantes para a sua obra.

Santa Marta foi o primeiro filme feito após a saída da TV Globo e podemos perceber na montagem uma forte presença da linguagem telejornalística: falas fragmentadas, inserção de imagens de cobertura e montagem temática – características que serão abandonadas por Coutinho. Ao mesmo tempo assistimos ao surgimento de alguns princípios que serão recorrentes na filmografia do diretor como depoimentos mais longos, imagem e montagem sem adjetivos – leia-se maneirismos – e o principal em sua carreira: olhar o outro sem exotismo. Coutinho quer conhecer quem mora no Santa Marta, como vive, como se diverte, que tipo de dificuldades passa, o que espera do futuro.

Coutinho passou 15 anos sem lançar um filme no cinema. Neste tempo se dedicou ao trabalho para a ONG Cecip (Centro de Criação de Imagem Popular) realizando vídeos educativos e atuando como consultor em outras produções. Eis que surge Santo Forte (1999), uma espécie de ressurreição de Eduardo Coutinho, que graças a um processo chamado kinescopagem transfere para filme tudo que foi captado em vídeo e volta às telas de cinema. As histórias dos moradores da Vila Parque da Cidade cantam e encantam os espectadores que se envolvem com os personagens. Aliás, como resistir à Dona Tereza ou não se surpreender com a dançarina Carla. Coutinho faz da favela um ponto de partida para falar sobre sincretismo do povo brasileiro e não um ponto de chegada para onde tudo converge.

Coutinho sobe o morro novamente em Babilônia 2000 (2001) com cinco equipes de filmagem portando pequenas câmeras digitais e mais uma vez pega de surpresa o espectador que espera ver apenas pobreza. Através de uma conversa solta, temas como morro, violência, relacionamento, religião, preconceito, casamento, filhos e futuro vão surgindo e formando um mosaico de diversas nuances e texturas, provando que a favela é muito mais do que somente miséria. Mas Coutinho não quer provar nada, não julga, quer apenas ouvir o outro e se surpreender com uma boa história.

A cinematografia de Eduardo Coutinho é uma espécie de síntese dos processos que a tecnologia vem permitindo ao audiovisual, democratizando e popularizando a produção de filmes, contribuindo para a criação de linguagens e estéticas. Esses três filmes do diretor que participam desta edição do festival irão ser exibidos nas comunidades onde foram filmados. O mais recente deles tem 12 anos, o que representa a oportunidade de uma nova geração ter contato com esses filmes. Eles representam a trajetória de Coutinho de volta às telas, que sofreu bastante com as formas de produção e nos apresentou um “cinema possível” como diz Consuelo Lins. Um cinema feito em vídeo, com câmera pequena com pouco ou nenhum dinheiro, mas com muito respeito ao outro que está do outro lado da câmera. Mais do que um homenageado do Festival Visões Periféricas, Eduardo Coutinho é uma inspiração.

Daniela Muzi
Jornalista e mestre em Comunicação Social pela Uerj

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